quinta-feira, 10 de maio de 2012

Veja   que belíssima lição da Professora Sandra Cavalcante.
Pena   que nossos ministros da Suprema Corte, que acabaram de decidir pela   constitutionalidade da lei de cotas, não tenham tal conhecimento e   sensibilidade para perceber onde está o erro e apontar para a solução   definitiva: melhorar a educação na rede pública, que aqueles   que não podem pagar frequentam. Mas um dia chegaremos lá.


POBRES ALUNOS, BRANCOS E POBRES...
Sandra Cavalcanti*

Este artigo é de  2009                                 .
Por Sandra Cavalcanti*                                


Entre as lembranças de minha vida, destaco a alegria de lecionar Português e Literatura no Instituto de Educação, no Rio.                          

Começávamos nossa lida, pontualmente, às 7h15.
Sala cheia, as alunas de blusa branca engomada, saia azul, cabelos arrumados.
Eram jovens de todas as camadas.
Filhas de profissionais liberais, de militares, de professores, de empresários, de                           modestíssimos comerciários e bancários.
Elas compunham um quadro muito equilibrado.
Negras, mulatas, bem escuras ou claras, judias, filhas de libaneses e turcos, algumas                           com ascendência japonesa e várias nortistas com a inconfundível mistura de sangue indígena.                          
As brancas também eram diferentes.
Umas tinham ares lusos, outras pareciam italianas.
Enfim, um pequeno Brasil em cada  sala.Todas estavam ali por mérito!                          
O concurso para entrar no Instituto de Educação era famoso pelo rigor e pelo alto nível de exigências.
Na verdade, era um concurso para a carreira de magistério do primeiro grau, com                           nomeação garantida ao fim dos sete anos.                          
Nunca, jamais, em qualquer tempo, alguma delas teve esse direito, conseguido por mérito,                  contestado por conta da cor de sua pele!                          
Essa estapafúrdia discriminação  nunca passou pela cabeça de nenhum político, nem mesmo              quando o País viveu os difíceis tempos do governo  autoritário.
Estes dias compareci  aos festejos de uma de minhas turmas, numa linda missa na antiga Sé,  já completamente restaurada e deslumbrante.
Eram os 50 anos da formatura delas!
Lá estavam as minhas normalistas, agora alegres senhoras, muitas vovós, algumas aposentadas, outras ainda não.                          
Lá estavam elas, muito felizes.
Lindas mulatas de olhos verdes.  Brancas de cabelos pintados de louro. Negras elegantérrimas, esguias e belas. Judias com aquele  ruivo típico. E as nortistas, com seu jeito de indias.
Na minha opinião, as mais bem  conservadas.
Lá pelas tantas,  a conversa recaiu sobre essa escandalosa mania de cotas raciais.
Todas contra! Como experimentadas  professoras, fizeram a análise certa.
Estabelecer igualdade com base na cor da pele?
A raiz do problema é bem outra.                          
Onde é que já se viu isso?                          
Se melhorassem  de fato as condições de trabalho do ensino de primeiro e segundo graus na rede pública, ninguém estaria  pleiteando esse absurdo.
Uma das minhas alunas hoje é titular na Uerj. Outra é desembargadora. Várias são ainda diretoras de escola. Duas promotoras.                          
As cores, muitas. As brancas não parecem arianas. Nem se pode dizer que todas as                           mulatas são negras.
Afinal, o Brasil é assim. A nossa  mestiçagem aconteceu.
O País não tem dialetos, falamos todos a mesma língua. Não há repressão religiosa.
A Constituição  determina que todos são iguais perante a lei, sem distinção de nenhuma natureza!
Portanto, é inconstitucional querer separar brasileiros pela cor da pele.                          
Isso é racismo! E racismo é  crime inafiançável e imprescritível.                          
Perguntei:  qual é o problema, então?
É simples, mas é difícil.
A população pobre do País não está   tendo governos capazes de diminuir a distância                           econômica entre ela e os mais ricos. Com isso se instala a desigualdade na hora da largada. Os mais ricos estudam em colégios particulares caros. Fazem cursinhos caros.  Passam nos vestibulares para as universidades públicas e estudam de graça, isto é, à custa dos impostos pagos  pelos brasileiros, ricos e pobres.                          
Os mais pobres estudam em escolas públicas, sempre tratadas como investimentos secundários, mal instaladas, mal  equipadas, mal cuidadas, com magistério mal pago e sem  estímulos.Quem viveu no   governo Carlos Lacerda se lembra ainda de como o magistério público do ensino básico era bem    considerado, respeitado e remunerado.                          
Hoje, com a cidade do Rio de Janeiro devastada após a administração de Leonel Brizola, com suas favelas e seus moradores entregues ao tráfico e à corrupção, e com a visão equivocada de que um sistema de ensino depende de prédios e de arquitetos,  nunca a educação dos mais pobres caiu a um nível tão baixo.                          
Achar que os únicos prejudicados por esta visão populista do processo educativo são os negros é uma farsa. Não é  verdade.  Todos os pobres são prejudicados:  os brancos pobres, os negros pobres, os mulatos pobres, os judeus pobres, os índios pobres!                          
Quem quiser sanar esta  injustiça deve pensar na população pobre do País, não na cor da pele dos alunos.
Tratem de investir  de verdade no ensino público básico.
Melhorar o nível do magistério. Retornar aos cursos normais.                          
Acabar com essa história de exigir diploma de curso de Pedagogia para ensinar no                           primeiro grau. Pagar de forma justa aos professores,  de acordo com o grau de dificuldades reais que eles têm de enfrentar para dar as suas aulas.  Nada pode ser sovieticamente uniformizado. Não  dá.

Para aflição nossa, o projeto  que o Senado vai discutir é um barbaridade do ponto de                           vista constitucional, além de errar o alvo.
Se desejam que os alunos pobres, de todos os matizes, disputem em condições de                           igualdade com os ricos, melhorem a qualidade do ensino público.
Economizem os gastos em propaganda.
Cortem as mordomias federais, as estaduais e as municipais.                          
Impeçam a corrupção. Invistam  nos professores e nas escolas públicas de ensino                           básico.

O exemplo do esporte está aí:  viram algum jovem atleta, corredor, negro ou não, bem                      alimentado, bem treinado e bem qualificado, precisar  que lhe dêem distâncias menores e coloquem a fita de chegada mais perto?   É claro que não. É na largada que se consagra a igualdade.
Os pobres precisam de igualdade de condições na largada.
Foi isso o que as minhas  normalistas me disseram na festa dos seus 50 anos de                           magistério!
Com elas, foi assim.                          

*Sandra Cavalcanti, professora, jornalista, foi deputada federal constituinte, secretária de Serviços Sociais no  governo Carlos Lacerda, fundou e presidiu o BNH no governo Castelo   Branco.

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